12 de maio de 2018

#Conto 4 - A mensageira ruiva


“Uma história inspirada em Jannetje Johanna Schaft”
Tudo que eu podia encarar era o muro manchado e as mechas de fios negros que pendiam no meu rosto. Tinha medo de que, caso eu me virasse, perdesse a coragem e o orgulho que me fizera chegar até onde eu estava. Já resisti por tanto tempo, não podia fraquejar agora. E eu sabia que fraquejaria. Eu sou humana. Ainda não sabia como eu deixava o desespero que apertava meu peito se mantivesse oculto. Mas sabia que tudo isso logo acabaria. 

Tudo havia acontecido muito rápido. Eu até diria que as coisas começaram quando eu ainda era jovem, mas não se passaram nem cinco anos desde que tudo começou. Eu completaria 25 anos daqui a alguns meses, mas isso agora já não é mais provável. Tudo começou muito sutil e disfarçado de boas intenções. Felizmente não foi só eu que enxerguei a loucura que aqueles que começaram a nos dominar queriam impor. Meu país estava sendo assolado por ideias insanas e desumanas que se tornavam leis e tinham que ser cumpridas, mesmo que à base de violência, ou até mesmo da morte, como já estava começando a acontecer. Eu não podia ver o que acontecia calada. Podia ser patriotismo ou simplesmente loucura, mas eu encarei as coisas e me afiliei a resistência. Sabia dos riscos. Também sabia que era necessário. 

Comecei como mensageira. Era um trabalho fácil, já que eu era mulher. Meu rosto jovem era comum e sem notoriedades, quase beirando a inocência. Se não fosse por meu cabelo ruivo, eu poderia sempre passar despercebida. De recados mais simples, fui ganhando confiança de meus companheiros. Mas sabia que podia fazer mais. Insisti até que me permitiram praticar com armas. Haviam poucos homens e eu sabia que poderia ser útil. Em poucos meses eu já havia realizado meu primeiro assassinato. Sangue de um homem que se aliava a loucura daqueles alemães fanáticos. Quantos ele já não havia matado com suas decisões? De um em um, nossa resistência começou a eliminar os que estavam trazendo o nazismo para dentro da Holanda. Mas não era de tudo eficaz. Não estávamos perdendo, mas aquilo também não era ganhar. De qualquer modo, eu me recusava a desistir. Fazia tudo o que eu achava ser estritamente necessário para nossa causa. Continuei espionando políticos e ameaçando suas vidas. Também os matando quando necessário. Transmitia mensagens, informações e resultados de minhas pesquisas aos nossos aliados nacionais e de outros países. Mas o desespero começava a assolar meus companheiros. 

Descobrimos um dos líderes nazistas mais importantes do país, e sua forte influência era responsável pela ocupação dessas ideologias no nosso governo. E como de praxe de sua posição, ele não era um alvo fácil. Fui incumbida de matar sua esposa e seus filhos. Mas matá-los não tiraria os frutos podres do governo, nem acabaria com a guerra. Eu não era assassina de crianças inocentes nem de esposas subordinadas a maridos cruéis e adotados de ideologias que só beneficiavam a si próprios. Eu não podia me rebaixar a isso. O fanatismo já estava impregnado e eu sabia que não ia fazer diferença alguma. Matá-los não me faria ser melhor do que aquele “führer” como seus seguidores gostavam de chamá-lo. Eu queria salvar meu país maneira certa. 

Voltei a ser apenas mensageira, mas com toda a repercussão da guerra, eu deixei de passar despercebida. O governo começou a me caçar e eu podia ver alguns cartazes pelas cidades, recompensando quem denunciasse a mensageira ruiva. Eles tinham meu rosto e o destaque enfático nos meus cabelos. Na mesma época, a notícia de que meus pais haviam sido levados para algum campo de concentração chegou até mim. Tentei, por meus meios, descobrir a veracidade disto, mas não encontrava nada findado, com o risco de ser uma armadilha. Não me entreguei. Entretanto, também não desisti de descobrir o que havia acontecido com eles. Enquanto não descobria a veracidade daqueles fatos, continuava regendo meu trabalho. Tingi meu cabelo de preto para não ser reconhecida. Mensagens atrás de mensagens. 

Rumores de que os aliados estavam vencendo e que a guerra podia estar se aproximando do fim. Talvez isso tenha me feito relaxar ou talvez era o cansaço de tantos anos lutando. 

Era início da primavera deste ano, e a população estava quase voltando a viver sua vida normal, se não fosse algumas formações de soldados passeando pelas ruas frequentemente. Eu também passava por lá, da forma mais discreta que eu podia, como fizera por tantas vezes. Foi então que um dos jovens armados que passavam por perto gritou de repente. Eu me assustei e acabei parando involuntariamente. Retomei meu caminho, enquanto ouvia uma leve discussão atrás de mim enquanto me afastava. Apertei o passo, mas já era tarde. Eles começaram a correr atrás de mim e eu não tive como fugir. Corri o máximo que minhas pernas permitiam, mas quando dei por mim, estava estirada no chão com os braços presos nas costas sem conseguir me mexer. Tudo que eu consegui entender foi que o soldado que gritara havia reparado nas raízes do meu cabelo. Eu havia esquecido de tingir. Estavam ruivas e ele me reconheceu. Eu não podia acreditar... Como pude? Estava me sentindo uma completa imbecil. 

Eu tive forças para resistir por algum tempo, mas haviam chegado momentos que eu não conseguia mais contar os dias. Talvez tivessem se passado uma semana, um mês ou até um ano. Eu não saberia dizer. Tudo o que eu sabia era que eu estava vivendo um inferno. Eles queriam os nomes daqueles que estavam comigo na resistência. Não entreguei ninguém. Mas não podia garantir se era por total fidelidade ou se era porque tudo o que eu conseguia pensar era em quanto a dor me domava. De qualquer forma, minha convicção se manteve. Talvez seja por isso que eles me trouxeram para cá. 

Eu podia sentir todos aqueles canos metálicos virados contra mim. Assim como todos aqueles olhares ansiosos. Não sabia quantos, nem à que distância estavam, mas eu sabia que estavam lá, apenas aguardando o sinal. As manchas negras eram de sangue seco respingado espalhados pelo concreto. Eu já não sentia mais meu corpo. Era como se o tempo parasse e toda aquela espera estivesse se tornando uma eternidade. As dores que me assolaram durante os últimos dias de mutilações e torturas infindáveis que fui recebendo não passavam de vestígios. 

Tudo o que me passa pela cabeça agora é se eu fiz alguma diferença em todos aqueles conflitos. Tantas mensagens, tantas mortes. O quão perto a libertação do meu país está? De qualquer forma estou feliz pelo que fiz. Pode ser patriotismo ou simplesmente loucura, mas eu quero acreditar que tudo ficará melhor agora. Eu estou em paz. O tempo voltara a correr. Ouvi vários burburinhos das pessoas que me rodeavam e uma voz soou mais alto. Não entendi as palavras pois vários estrondos a acompanharam. Depois disso tudo ficou escuro e silencioso, mas ainda havia paz.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá, tudo bom?
Eu sou a Kami e espero que tenha gostado do meu blog. Fique a vontade para deixar sua opinião. Seu comentário é muito importante para mim.

Um beijo, um docinho e volte sempre. ;*