15 de fevereiro de 2018

#Conto 1 - Nada além da canção

 

Não sabia ao certo porque eu estava vendo aquelas pessoas ao meu redor. Não lembro de ter pensado em nada com aquela minha primeira visão quando eu havia despertado. Eu simplesmente havia aberto os olhos e sentia que devia esperar algum comando chegar em minha mente. Então tudo o que fiz foi esperar, enquanto todos aqueles seres de jalecos brancos me encaravam e anotavam freneticamente em suas pranchetas. Tudo se escurecia constantemente, mas quando eu tinha a possibilidade de ver outra vez, a cena ainda era a mesma. Eu não me sentia incomodada. Estava indiferente a tudo aquilo, como se de alguma maneira fosse para ser realmente assim. 

Dias se passaram até que em um de meus despertares, me deparei com um cenário diferente. Fui levada para uma sala cinza, com um grande espelho colocado em toda a extensão de uma parede. Mais tempo de espera. Algumas batidas vieram de algum lugar que eu não conseguia ver. Pude sentir meu corpo ser levado a acompanhar todas as batidas que sondavam aquele lugar. O espelho refletia todos os meus movimentos, mesmo que eu não sentisse fazer nada por mim mesma. Eu saltava, rodopiava, elevava meus braços, minhas pernas. Não havia parte de mim que não se movia. As infinitas linhas negras que saiam de minha parte superior plumava junto aos tecidos que me envolviam. E tão rápido quanto começou, havia acabado antes que eu pudesse perceber. Meu corpo caíra inerte no chão e não era mais possível escutar qualquer coisa naquele lugar. 

Foi quando um dos homens de jaleco entrou. Correu em minha direção e começou a procurar algo em mim. Mãos, pés, pescoço e até a parte do corpo que havia estado coberta. Seu rosto parecia consternado. Sua boca se movia e eu não entendi o porque daquele gesto. Provavelmente foi algum tipo de chamada feita, pois outras pessoas de jaleco entraram na sala. Começaram a mexer em coisas do meu corpo, mas eu só sabia disso pelo reflexo do espelho. Não escutava ou sentia nada. O que quer que estivessem fazendo comigo, não fazia diferença. Tudo o que eu tinha que fazer era esperar. 

Aquele havia sido apenas o primeiro dia de muitos iguais aquele. Mas não tive a intenção de contar. Nada daquilo me parecia estranho. A música parecia parte da minha existência, e as imagens refletidas no espelho pareciam me pertencer cada dia mais. E quanto mais eu sentia isso, mais as visitas dos homens de jaleco deixavam de acontecer. Até que em várias vezes e por várias músicas diferentes, eles nem se deram o ar da presença. E eu permanecia fazendo o que meu corpo era compelido de fazer. 

Mas outra mudança havia chego. O mesmo homem de jaleco que havia vindo por mim na primeira música apareceu diante de mim movendo os lábios e fazendo gestos com as mãos. Enquanto isso, um de seus companheiros tirava os tecidos escuros que me cobriam e trocava por panos claros e mais volumosos. Meus cabelos foram amarrados todos juntos no topo de minha cabeça e meu rosto pintado com cores diferentes da minha superfície. E eu fui levada mais uma vez para um lugar novo e desconhecido. E da mesma forma, isso não me pareceu estranho. Me restava esperar outra vez. Tudo ficou escuro por um tempo, mas não dava para saber o quanto.

Quando acordei, uma enorme parede de tecido vermelho estava diante de mim. Era tudo o que eu podia ver. Eu sabia que não estava me mexendo mesmo sem o espelho. Eu havia entendido que isso só acontece quando eu escuto algo. A parede vermelha começou a se levantar. Um cenário novo emergia junto com ela. Várias filas de acentos vazios se espalhavam pelo espaço. Apenas um lugar tinha ocupação. E ele não usava jaleco. 

Tinha um olho azul e outro verde, diferentes de todos os que eu tinha visto nos homens da sala cinza. Mesmo que fossem só olhos, não era a cor que lhe parecia realmente pertinente. Mas sabia que isso não importava. Comecei a ouvir as batidas de uma canção. Não podia ver e nem saber exatamente, mas supunha que seu corpo começara a se mexer da mesma forma como fazia na sala. Minha visão oscilava com os movimentos, mas ainda sim ela não desviava do olhar de seu único espectador. Não contara os minutos que se passavam, mas a medida que eles se prosseguiam música após música, filetes finos de água deslizavam dos olhos daquele homem. Sua expressão se contorcia a cada nova gota que descia pela sua face. Ela não conhecia aquilo. Ainda não havia visto nada desse jeito. Não podia fazer nada, de qualquer modo. 

A música havia parado. A visão transmitida era a mesma imagem de antes, mas agora tombada. Eu devia estar deitada no chão. Fazia tempo desde que aquilo não acontecia. Mas sabia o que tinha que fazer; esperar. Mas não foi ninguém de jaleco que se aproximou. O homem de olhos coloridos suspendia minha cabeça e movia os lábios freneticamente. Não eram música, eu não podia escutá-lo. Mais água saia de seus olhos e agora de sua boca saiam palavras melodiadas. Eu sabia porque eu podia escutá-las. Ele estava cantando e isso fez com que uma de minhas mãos se colocasse em seu rosto. Ao menos era o que eu podia ver, pois não sabia o que o resto de meu corpo poderia fazer. Aquilo o fez mudar a expressão de seu rosto e ele secou a água de seus olhos. Então tudo ficou escuro mais uma vez. 

Agora era uma sala ornamentada de madeira marrom e tecidos azuis. O mesmo homem de antes agora estava na minha frente com outras vestimentas. E desde então eu não via mais a escuridão. Via apenas o homem passando recorrentemente a minha frente e, quando ele me olhava, mostrava os dentes. Eu não entendia o propósito. Mesmo quando o lugar ficava escuro, eu ainda podia ver, embora a claridade voltasse mais intensa logo depois. E essas mudanças recorrentes entre o claro e o escuro faziam ele mudar também. O rosto limpo ficava um pouco mais enrugado, os cabelos castanhos ficavam acinzentados até que ficaram completamente brancos. As visitas estavam menos recorrentes. Então alguns outros seres sem jalecos passaram por mim, vestidos de pretos. Uns passando lenços brancos em seus olhos, outros abraçando estes. Depois disso, nunca mais vi aquele homem de olhos coloridos que me mostrava os dentes. 

Muitas claridades e muitas escuridões se parraram depois disso. Eu ainda via a mesma cena, embora um pouco mais desbotada e cheia de manchas cinzas e marrons espalhadas pelas coisas presentes no lugar. Criaturas pequenas e peludas passavam pelo lugar. 

Numa dessas noites de escuridão, a claridade veio de maneira mais rápida que o de costume. E era uma claridade diferente, alaranjada e oscilante. Ela não era só a mudança da iluminação, também eram coisas novas que brotavam daquele lugar. Por algum motivo, ela sabia que para mudar de cena, só precisava esperar, como sempre fora. Então tudo ficou escuro mais uma vez. E por mais que ela esperasse a nova a imagem a se ver, não haveria mais como acordar.


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